Thursday, May 22, 2008

"cadavre exquis" (cadáver esquisito)

Por outro lado, não era bem o que ela dizia, era mais a forma como se movimentava graciosamente pela sala do baile, os finos dedos que acendiam a cigarrilha e a elegância de quem não sorri, perante os olhares atentos de todos os homens sedentos de uma dança suada contra o seu peito, empalidecidos com a imagem de tocarem tão bela silhueta e nela repousarem os seus medos e ânsias. Contudo, ela não cedia e continuava a passear o seu longo vestido carmesim, serpenteando por entre casais que se amavam dançando.
E ainda que ela estivesse, noite após noite, sozinha, mais não era do que uma pantomina para os que a fitavam, decidida a nada em concreto, existia apenas na permanente adoração do momento presente.
E quando a música começava e os casais rodavam, rodavam, rodavam, ela sabia que tinha de lhe dar o seu coração. Rendida à banda que tocava, dava início à sua epifania. A noite era agora dela. E os cheiros, toques, sons, eram dela. E os movimentos, a dança e o auditório, eram dela. E aquela sala, único lugar acordado no mundo, era dela.
O êxtase de mais uma celebração monumental do seu ego.


Pedro Barbosa
Henrique Lopes

Tuesday, May 20, 2008

parada

parada olhava para trás. e parada assistia ao desenrolar de toda uma vida.
sentou-se no passeio (mais confortável, achou, ainda só ia na infância), e inconscientemente brincava com as pedrinhas da calçada.
era giro recordar todos os momentos passados até ali, nostalgia da infância, vergonha da adolescência, maturidade da entrada na idade adulta. caramba tinha vivido tanto e no entanto tão pouco.
continuava sentada no meio da rua não se importando com as pessoas que se afastavam e olhavam reprovadoramente.
'e então? tou parada no meio da rua, que tem? só me sentei para não ficar cansada'
foge, que é maluca, ouvia-se. e realmente até parecia.

parada, onde é que já se viu?

parada olhava agora para o seu presente. pedaços mais próximos de incertezas do que das óbvias certezas do passado. como é óbvio.
a noite já se tinha instalado e ela continuava parada. via agora gotas de pensamentos futuros. exclamando de surpresa, tentou agarrar-se a elas, mas como gotas que eram de imediato fugiram por entre os seus dedos de unhas pintadas de nada. levantou-se num repente e correu. correu atrás das gotas. gotas que fugiam, gotas que riam, gotas de escárnio, gotas, gotas!
ah tanto correu ela, cansou o seu corpo, mas mais ainda a alma, essa espécie de vulto maculado de vestígios de humanidade. correu, correu, não voltando a agarrar as gotas de futuro. o seu futuro. ironia, o seu futuro fugia de si.
as gotas, o destino, o futuro, o fado.
desgastou o corpo, até ao fim. a alma voou.
fechou os olhos, e de novo ficou

parada.