Thursday, September 28, 2006

história de um casamento

Olho pela janela e qual não é o meu espanto? Vejo-te a sorrir, como uma menina de coro, ali toda bem comportadinha e tal, toda bem vestidinha como se tivesses ido a um baile como aqueles de apresentação à sociedade, vestidinho, sapatinho e luvinha branca. Tudo isto seria talvez normal não fosse o simples facto de estar a chover desalmadamente. E eu digo “estás maluca? Está a chover de carago e tu aí ao frio a apanhar esta chuva toda, o que é que te deu?”, ao que tu me respondes, lá do alto de toda a tua impertinência, “é? Só tou aqui à chuva porque tu ainda não me vieste abrir a porta, não achas? Anda lá que eu quero-te dizer uma coisa”. Abro-te a porta, confuso, pensando no que estarias ali a fazer com aquele tempo, às onze da noite de um domingo muito pouco prestável, e tu sobes a correr as escadas, quase tropeçando no teu longo vestido, e, num grande abraço, envolves-me com toda a tua ternura e ali ficas, abraçada a mim, absorta de tudo à tua volta. “ Ó pá, eu sei que sou amigo e tal, mas será mesmo preciso molhares-me todo? Este pijama pode ser de ursinhos mas até gosto dele e não me apetecia mudar agora!” riste-te e, continuando o abraço, sussurras-me ao ouvido “não te quero perder, quero ficar contigo para sempre sua besta”. Caramba, o que é que deu à rapariga? Continuou ainda, “para quê que achas que trouxe o vestido?”, pensei aí uns dez segundos e perguntei a medo “sentes-te bem? Não enlouqueceste pois não? O Carnaval é só daqui a um mês…”, largando-me proferiu um tanto ou quanto irritada, mas sempre com um sorriso estranho, “és mesmo uma besta insensível, não vês que isto é para nós nos casarmos?” “mas porquê a pressa? eu não tenciono fugir tão cedo…” levando-me para a sala, dizes “eu é que não aguento mais, não percebes? Ai vocês homens não percebem nada, são tão tapados.” Estará ela a falar a sério? Mas hoje nem me apetece casar nem nada, penso, vou fazê-la ver que hoje não pode ser, “mas ó espera lá um bocado, como é que queres casar se não tens o padre contigo? E o meu fatinho de cerimónia está para lavar lá na lavandaria Simões!” pronto, consegui, dou pulos de contente por dentro a pensar que agora ela ia ver o absurdo da coisa e ia apenas tirar o vestido, sentar-se e começar a ver televisão, “o quê, achas mesmo que eu ia casar sem o padre a abençoar-nos? Até parece que não me conheces! No mês passado, no casamento da Rita e do Pedro, eu gravei todas as falas do padre naquele gravador de bolso que me deste nos anos! Agora temos um padre só pa nós, as vezes que quisermos, quando e onde quisermos, e sobre o fato posso dizer que fiquei um bocado decepcionada, mas esses ursinhos são mesmo queridos! Podes muito bem casar com esse pijama, ou não?” meu deus, ela está maluca! “bom, se queres mesmo casar agora, tem que ser só daqui a uma hora porque agora vai começar o Seinfeld e tu sabes que eu não perco nunca um episódio” e tu ali, no meio da minha sala, em frente à televisão, com uma expressão de desafio capaz de intimidar o mais forte dos guerreiros, “achas mesmo que te vou deixar ver essa porcaria no nosso dia de casamento? Vá, vamos começar” entusiasmada, pões o gravador na mesinha do café e ajoelhas-te, puxando-me para teu lado, carregando no play. “Isto é absurdo”, digo eu, “tu até gravaste por cima da voz do padre os nossos nomes para ficar tudo direitinho! Estás a ficar senil?” “chiu!”, repreendes-me, “repete o que o padre vai dizendo e no fim diz aceito” eu lá ia indo na conversa, até que a morte nos separe e tal, continuando a achar isto uma tremenda palhaçada. Até que se ouviu “pode beijar a noiva” e, invertendo os papéis, és tu que te atiras para mim, beijando-me com vontade e com carinho. Assim ficámos durante uns bons dez minutos, alheios à chuva que batia agora contra a janela de uma maneira abusiva.
E assim casámos. Tu de vestido, eu de pijama, rindo-nos um para o outro, até que me lembro de uma coisa normalmente bastante importante, senão a mais importante, “então e as alianças? Não há disso no nosso casamento?” “Ó amor, a única aliança de que eu preciso é aquela que tu formas comigo, és tu a minha aliança, agora cala-te com sentimentalismos e anda rápido pá cama, já se faz tarde, e eu tenho frio…”

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